
Ana Paula Serra
Docente

E, AGORA, O QUE É QUE EU FAÇO?
“É para nota? – Não, é para aprender. Pois sim senhor, para aprender é que é: para eu aprender, para o aluno aprender; para estarmos mais perto um do outro: para partirmos a aula ao meio: pataca a mim, pataca a ti.” Diário de Sebastião da Gama
Quando, no longínquo ano de 1982, aceitei um temível horário noturno numa escola de Lisboa, desconhecia a incrível história de amor que iria nascer entre mim e a docência. Como muitas histórias de amor não teve um percurso linear. A isso chamar-se-ia perfeição. Esta não é uma história perfeita. Foi feita de encontros e desencontros, tristezas e alegrias, esperanças e frustrações, geradora de ciúmes e incompreensões. Mas, como todas as verdadeiras histórias de amor, resistiu, consolidou-se, amadureceu, tornou-se mais forte, inabalável.
Eu gosto muito de histórias, aprendi a escrever histórias, ouvi muitas histórias, ensinei a escrever histórias. Aprendi e ensinei que as histórias têm um princípio, um desenvolvimento e uma conclusão. Reconheço, agora, com 66 anos, que fui enganada. A minha história tem um início, sim, mas diversos desenvolvimentos e vários fins. Recomecei várias vezes e este não é o fim, porque acredito que as várias pessoas que passaram por mim levaram e deixaram marcas, vão continuar a viver dentro de mim, fazendo de mim a pessoa que fui, sou e serei.
“Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si levam um pouco de nós.” Antoine de Saint-Exupéry
Costumo dizer que, desde o momento em que entrei para a escola, nunca mais saí. Na verdade, a memória é enganadora, colocamos as peças e podemos movê-las, hoje com uma direção, no dia seguinte com outra, a interpretação da memória é algo complexo, mas eu acredito nas minhas memórias enquanto veículo que trazem até mim momentos do passado. À minha vida surge sempre associada a escola e as suas rotinas tão próprias: os recreios, o estudo, os trabalhos de casa, a convivência com os colegas, a hora de saída e de entrada, as poucas saídas em grupo, algumas festas comemorativas de efemérides. Muito cedo, comecei a fazer sublinhados nos manuais, resumos de matérias, rascunhos antes do texto definitivo, criei um código de escrita para mais rapidamente conseguir tirar apontamentos durante as aulas. Não aprendi tudo na escola, incentivada por um ambiente familiar que propiciava a curiosidade e valorizava a escola. Não sei a partir de que momento exato desejei ser professora, mas sei que fui inspirada por uma professora de Francês no antigo 2º ano do liceu. No meu fascínio ao ouvi-la, comecei a sonhar “Quero ser uma professora assim.” No final do liceu, eu sabia o que queria ser, apesar de ter pensado em outras alternativas: hospedeira de bordo, guia-interprete.
“Sem a curiosidade que me move, que me inquieta, que me insere na busca, não aprendo nem ensino.” Paulo Freire
No geral, a minha experiência como aluna foi muito boa. Eu gostava da Escola como espaço de confraternização, de segredos, onde as conversas e brincadeiras fluíam de forma natural, mas também como espaço de aprendizagem. É isso que me dizem as memórias. Como ainda professora provisória, estive um ano letivo aqui, no D. Dinis, com horário diurno e noturno. Aqui, encontrei um antigo professor de Português do Liceu, talvez o meu preferido, pelo seu rigor e calma com que falava aos alunos. Reconheceu-me e ajudou a minha integração. Para mim, é um enorme motivo de orgulho, ter sido colega de um professor que me deixara marcas.
Eu queria ser professora, investi nesse sentido, mas para construir uma identidade profissional foi necessário praticar. Ou, como tantas vezes disse aos meus alunos e alunas, só se aprende a escrever, escrevendo; só se aprende a ler, lendo; só se aprende a interpretar, interpretando. O exercício profissional constrói a identidade profissional (António Nóvoa).
A minha identidade docente é minha, então, a minha responsabilidade é incomensurável, pois eu estou perante pessoas que esperam de mim o melhor. Interagir com os alunos, realizar planos de aula, avaliar, procurar estratégias, são tarefas dos docentes, por mais formações que realizem, conversas que tenham com os seus pares, partilha de ideias, frente aos alunos e alunas, o docente é o protagonista de uma história para onde transporta as suas experiências pessoais e, no meu caso, as minhas vivências escolares, mas tendo sempre presente as aprendizagens dos alunos, levá-los a descobrirem e a descobrirem-se.
«(…) mas eu não sou tão teimoso, nem tão rígido nos meus planos que não os deixe tomar um sentido novo que as circunstâncias provoquem.” Sebastião da Gama
Lecionei em algumas escolas (poucas) antes da minha efetivação na Escola Secundária D. Dinis no ano de 1991-1992. Aqui me fiz professora. Aqui construí, de forma consciente a minha identidade profissional, nos diversos cargos que honradamente desempenhei, para além da docência – diretora de turma, delegada de Francês, coordenadora de projetos. Todos estes cargos foram gratificantes nos diversos contactos e experiências que me possibilitaram, na responsabilidade com que os encarei, nas dinâmicas que desenvolvi. Como diretora de turma fui aprendendo como é importante o contacto com o encarregado de educação, como é primordial a escolha das palavras e paciência, a preparação de uma estratégia de aproximação de modo a mobilizar a família a colaborar com a escola, ter em conta as diferentes perspetivas que coexistem, a das famílias e a da escola. Enquanto delegada de Francês, desejei, com o grupo de professoras com quem trabalhei, desenvolver o gosto pela língua e cultura francesas, realizando exposições e atividades lúdicas que colocavam em prática as aprendizagens, implementando o Clube de Francês pelo qual fui responsável. Como coordenadora de projetos, contactei com dinâmicas de ensino aprendizagem diferentes das que utilizava, colegas entusiasmados em levar os alunos e alunas a horizontes desconhecidos. Em qualquer uma destas funções, as múltiplas atividades que organizei e os diversos contactos estabelecidos com múltiplas entidades foram uma mais valia que levo comigo.
O trabalho do professor vai para além da sala de aula, onde tantas vezes nos sentimos isolados /isoladas. No entanto, a escola é uma comunidade onde um conjunto de professores, cada um com as suas características, tem de conviver. Considero este aspeto um dos lados fortes na nossa escola: a partilha de experiências, de problemas vividos em sala de aula, ouvir as situações, por vezes complicadas, que se viveram e ajudar a solucionar. A partilha de situações leva à reflexão, aspeto muito importante na prática letiva. Reflexão sobre as práticas em sala de aula, as dos colegas e as minhas.
Estou grata à Direção do Agrupamento por ter acreditado em mim, dando-me a possibilidade de sair da minha zona de conforto, repensar estratégias, partilhar diferentes pontos de vista. Dando-me a sua confiança, fizeram-me progredir, melhorar e refletir. Oferecer aos alunos e alunas possibilidades diferentes das oferecidas pelas famílias, fomentar a curiosidade, empenharmo-nos no que é melhor para a comunidade escolar, respeitar as diferenças foram sempre as nossas preocupações.
Sou professora e sou pessoa. Dificilmente distingo o pessoal do profissional. Sempre levei trabalho para casa que me ocupou muitos fins de semana, fiz inúmeras pesquisas de espetáculos / atividades / visitas para os alunos que me ocupavam o tempo que deveria dedicar à família ou a mim própria. Nas viagens que realizei, sempre recolhi material que poderia utilizar em sala de aula. E é inevitável, onde está uma professora ou professor, fala-se de escola, relatam-se vivências.
Muita gente considera estranho ser professor, mas em momento algum considerei a hipótese de desistir da docência ou mudar de escola. A pouca valorização profissional, os baixos salários, o crescente pouco empenho dos alunos, o diminuto reconhecimento social e investimento político na educação, a desconfiança com que nos olham nunca me demoveram. Lecionei 31 anos nesta Escola onde, desde o primeiro dia, fui bem recebida, onde tive o apoio e amizade de muitos professores e professoras, onde os funcionários são afáveis, sempre senti que tinha um compromisso para com os alunos e a Escola. Não posso esquecer duas colegas ausentes que foram, para mim, exemplos de amor ao ensino, aos alunos e à escola. Nas suas diferenças, fizeram de mim melhor pessoa e melhor professora. Nunca as esquecerei. Muito obrigada, Berta. Muito obrigada, Ana Paula.
Fecho um ciclo, mas não é um fim. Tal como encontrei o meu antigo professor de Português, há dois anos, tive como colega uma aluna desta escola. Foi, para mim, um privilégio e um orgulho conviver com uma colega que tinha sido minha aluna. Sei que, para ela, também foi.
Dei tudo aos meus alunos e alunas, de forma rigorosa, afetuosa, profissional e cheia de emoções. Aprendi e ensinei, tudo em grande quantidade. Passaram pelos meus olhos centenas de jovens, nenhum igual ao outro, comoventes e únicos, uns ávidos de curiosidade, outros nem por isso. O meu lugar de eleição é a sala de aula, foi ali que me revelei, porque sou pessoa, com defeitos e qualidades e sou professora, trabalho extremamente exigente que obriga a ter todos os sentidos em alerta. Não cheguei a todos de igual forma, tenho consciência disso; a alguns não cheguei mesmo, mas há os outros. Os que lembram visitas feitas há dois, três anos, os que escrevem recados, os que deixam as fitas de curso para escrevermos uma mensagem, os que já têm filhos e são nossos amigos e amigas nas redes, os que encontramos no supermercado, no restaurante, no transporte e fazem questão de nos falar, de recordarem situações “Stôra, lembra-se como chorei, porque não havia conchas para todos?” Os que vemos crescer, ficarem mais altos que nós, começarem a namorar, fazerem planos… é isso que me encanta. Quando batem palmas depois de um colega se sair bem em algo que, para ele, é difícil; quando, em segredo, dizem “ó, stôra, hoje não faça perguntas à M. porque o pai está no hospital.” Não, não foi tudo um mar de rosas, houve dias verdadeiramente difíceis, alunos complicados, gerir múltiplas e distintas emoções num mesmo espaço é muito difícil. Esgotante. Muitas vezes, senti-me esgotada, mas, no dia seguinte, recomeçava com a mesma vontade. Ser professora é fascinante.
“Hoje, sim senhor! A aula foi uma coisa alegre, vibrante, harmoniosa. Principalmente harmonia – entendendo-se por harmonia justamente o que deve entender-se: comunhão perfeita de nós todos. Às vezes tenho a sensação de que o mundo começou de novo.” Diário de Sebastião da Gama
Pelo sonho é que vamos
Pelo sonho é que vamos,
Comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não frutos,
Pelo Sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
Que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
Com a mesma alegria,
Ao que desconhecemos
E ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
-Partimos. Vamos. Somos.
Sebastião da Gama
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